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15.9.13

Palácio Foz: a minha vida dava um filme...

No limite oriental do "Passeio Público do Rossio" erguia-se em meados do séc.18 um velho palácio onde residia o Marquês de Castelo Melhor. Quando o terramoto de 1755 deitou tudo abaixo, a reconstrução efectuou-se mais para o lado da rampa da Glória, nos terrenos que tinham sido propriedade dos condes de Castanheira.


Os trabalhos arrastaram-se até 1858. O novo Palácio Castelo Melhor deveria ser uma mansão sumptuosa, mas pouco tempo ficou na família. Em 1889, a sexta Marquesa vendeu-o ao Marquês da Foz e foi morar para mais próximo do Castelo (para aqui).



Durante não mais do que uma dúzia de anos, o Marquês introduziu tais modificações no Palácio Foz e de tal forma o recheou de património que, à excepção das paredes exteriores e da grande e rica capela pouco ficou que lembrasse os Castelo Melhor. Encarregou da obra os melhores arquitectos, escultores e entalhadores da época. Reconstruído e redecorado, dotou-o da mais rica colecção de arte que alguma vez houve entre nós. Entre 150 quadros de cavalete figuravam obras de Rubens, Rembrant, Velasquez, Bosch, Lebrun, Ribera, Cranach... Tapeçarias de Beauvais, Aubusson ou Bruxelas alternavam com Gobelins, colchas bordadas da Índia, porcelanas de Saxe, de Sèvres ou da China, biscuits, chagrins, charões, mármores, cadeiras de espaldar, consolas e tremós.

Tornaram-se famosas as festas quase diárias no Palácio Foz, para onde convergia a nata da frívola sociedade lisboeta, ávida dos recitais de Verdi e Puccini e dos banquetes requintados para centenas de comensais.


Quem muito gasta pouco ganha, e o Marquês da Foz abriu falência ao fim de 12 anos a levar aquela vida...
Em 1901, um monumental leilão levou à praça todo o recheio do Palácio. Tudo se vendeu, excepto as paredes exteriores erguidas pelo Marquês de Castelo Melhor. Até a famosa grade das oficinas Moreau que ainda hoje emoldura a grande escadaria, e o respectivo lampião, estavam no catálogo mas felizmente não se venderam.
No final ficou quase vazia a que tinha sido a mais faustosa residência de Lisboa. Um sem número de preciosidades tinha sido apeado, desmontado, levado sabe-se lá para onde.



Nesse mesmo ano, a casa foi alugada a Manuel José da Silva, proprietário do "Anuário Comercial". Em 1908 estava hipotecada ao Crédito Predial e dois anos depois foi comprada pelo primeiro conde de Sucena, empresário com título forjado no Brasil.
Os Sucena arrendaram o edifício a ourives, alfaiates, fotógrafos e modistas. Lá funcionaram clubes, salas de espectáculo e até um ginásio, uma oficina e uma leitaria, como numa gigantesca colmeia.

Em 1939, o Palácio Foz foi de novo hipotecado à Caixa Geral de Depósitos e depois vendido à Fazenda Pública. Integrado no Património Nacional, beneficiou a partir de 1944 de grandes obras de restauro, destinado a albergar o S.N.I. e mais tarde a residência da Cultura e da sua política de incentivos.



Como em qualquer Palácio que se preza, também no Palácio Foz a entrada se faz pela escadaria nobre. Mas esta é, ainda hoje, a mais sumptuosa do país.









"Sob a coroa do marquês, o brasão esquartelado dos Foz, com as flores-de-lis em santor, as arruelas e leões postos em pala, as correlas fretadas e o leão rompante pleno do campo, paradigma dos Castelo Branco."




Sala da Lareira:



Sala dos Espelhos:







Sala Luís XVI:




Sala dos Painéis:




Sala de Jantar:





A "Abadia":

Em 1917 foi inaugurada a Pastelaria Foz, que ocupou diversas dependências do andar térreo. E na cave ficou instalado o Restaurante Abadia no lugar anteriormente ocupado pelas cocheiras e arrecadações. 
Esta obra, a cargo do conceituado arquitecto Rosendo Carvalheira e de que se conserva cerca de metade da área original, é demonstrativa do gosto “belle époque”, misturando o revivalismo medieval com um pseudo-manuelino sobrecarregado de formas e elementos simbolistas.




A "Abadia" está dividida em três partes: o Claustrum com a sua "taberna vínica"; o Refectorum, inspirado nos claustros do românico cisterciense peninsular; e as Celas, pequenas dependências suspensas sobre o Claustrum.





Escultores (Costa Mota, José Neto) e pintores (Domingos Costa, Luís Borges, José Bazalisa) não hesitaram em criar  colunas toscanas com capitéis dourados em cujas folhas de acanto se entrevêem cenas das fábulas de La Fontaine, naves góticas com colunatas policromadas, encordoados manuelinos asfixiando grifos e dragões.




Nas sancas do Refectorum representaram bustos de 24 personalidades decerto bem conhecidas na época (algumas ostentam símbolos maçónicos). Nas mísulas do Claustrum associaram aos temas clássicos cabeças de elefante com trombas entrelaçadas.


A par das caves do Teatro da Rua dos Condes (com quem a "Abadia" comunicava por meio de um túnel destruído pelas obras do Metro), também neste restaurante se realizavam reuniões gastronómicas do grupo maçónico "Os Makavenkos".



Era uma sociedade gastronómica e filantrópica fundada em 1884 por Francisco Grandella (o tal dos Armazéns). Faziam dela parte, entre outros, o duque de Lafões, Bulhão Pato, Rafael Bordalo Pinheiro, D.Francisco de Sousa Coutinho e o almirante Ferreira do Amaral. Política e religião eram assuntos nunca discutidos, tendo o seu ex-líbris como divisa "Honni soit qui mal y pense".



As Máximas dos Makavenkos:

  • Zela pelas coisas municipais, porque são também tuas.
  • Não deixes danificar as paredes e os muros, consentindo que lhe escrevam e as sujem.
  • Ama o teu país e sobretudo a tua linda cidade de Lisboa. Evita por isso sujá-la e que os mais a sujem.


É conhecida a sua intervenção na conspiração revolucionária de 1910, bem como o subsídio de empreendimentos de utilidade pública no âmbito da saúde e altruísmo (auxiliavam órfãos pobres, artistas desamparados e doentes carenciados).


Também não guardavam segredo das suas extravagâncias e excentricidades: nos opíparos jantares que organizavam, faziam questão de reunir belas mulheres (sobretudo actrizes) e eram acompanhados por uma orquestra de músicos de olhos vendados.




Entravam bem trajados pela Rua dos Condes, como se fossem para o teatro. Empresários, políticos, artistas, médicos, jornalistas, aristocratas e plebeus, monárquicos e republicanos, maçons, ultraconservadores e revolucionários passavam as bilheteiras sem parar, desciam dois lanços de escada e tocavam à porta da sociedade 'secreta' dos makavenkos... um clube privado lisboeta para polígamos "de todas as qualidades, excepto os vadios", que gostavam de petiscar na mesa e na cama. Ali, cozinhava quem sabia e desfrutava quem podia, sempre em agradável companhia feminina, também aceite sem descriminação de classe, da nobreza à rua, conforme as paixões dos convivas.

À entrada, vestiam o modo de ser makavenkal: o prazer da boa mesa, da "alegre rapioqueira", e a compensação dos 'pecados' com actos de benemerência. Mas, ao fim de 26 anos, quebraram uma das regras. Ou nunca cumpriram essa de não falar de política e religião. No ano de 1910, na Casa dos Makavenkos, onde a prioridade era dar "largas à alegria e elasticidade à tripa", preparou-se a revolução. Na cave do Teatro Condes, edifício que já foi cinema e é agora o Hard Rock Cafe, os republicanos e maçons Francisco de Almeida Grandella, 57 anos, José António Simões Raposo, 35, José Cordeiro Júnior, 40, José de Castro, 42, Machado dos Santos, 35, e Miguel Bombarda, 59, conspiraram contra a monarquia, contra o rei D. Manuel II, de 21 anos e no trono havia 29 meses.

O clube fora fundado, em 1884, por Francisco Grandella e mais 12 amigos que gostavam de patuscadas, reinava ainda D. Luís. A divisa escolhida foi a da britânica Ordem da Jarreteira, a comenda da liga azul, honni soit qui mal y pense, talvez por ter sido inspirada por uma amante de rei que deixou cair uma liga quando com ele dançava num baile da corte. Pelos primeiros estatutos, os sócios não ultrapassavam o número 13 (regra rapidamente alterada para integrar mais 13 e mais 13... ao longo dos anos, o clube teve mais de 100 sócios), mas podiam levar convidados. Todos eram iguais perante a sopa, o copo e as makavenkas e nenhum podia namoriscar com a mesma por mais de 15 dias. Findo este período ela seria declarada "praça aberta" e ele, se insistisse, levava o título de "lamechas" e a intimação para pôr fim ao relacionamento em 24 horas.

Onde primeiro se assentaram os comensais foi no Palacete do Conde de Antas, no jardim, também casa de várias espécies de animais, por isso denominado Parque Zoológico. Todavia, os makavenkos nunca deixaram de saltitar por outras casas e restaurantes, até o empresário Grandella comprar o terreno do velho Teatro Condes e mandar reconstruí-lo em 1888, reservando a cave para prazeres levemente ligados à dramaturgia, não obstante vulgarmente se enchia de autores, actores e actrizes... E ali se implantou a sede makavenkal para jantares, festas, banquetes e, mesmo, sessões de espiritismo, por onde passou uma boa parte da alta sociedade e da intelectualidade masculina.

A sociedade secreta dos Makavenkos
Mas, não fosse Grandella um homem com uma visão extraordinária do futuro e os restantes sócios aventureiros entusiastas, o clube extravasou a cave e internacionalizou-se, quatro anos passados da revolução republicana. Há muito que os makavenkos desejavam fundar, nas possessões portuguesas em África, uma cidade que começaria "como todas as outras, por uma casa, depois por outra e logo a seguir por muitas". Um dia tornou-se sócio Alfredo Ribeiro da Fonseca, que se preparava para uma missão africana. Erguer uma Makavenkopólis revelou-se a outra missão do "novo Culombo", como cognominaram o militar, por ser "um nome simbólico e sugestivo, composto por duas coisas que a natureza das mesmas pôs em seguida uma à outra". O capitão partiu, levando uma credencial que o habilitava a içar, em nome da sociedade, "a bandeira bicolor (verde e encarnada, está bem visto) no primeiro ponto propício à fundação de uma colónia Makavenkal". Souberam mais tarde que o nome da sociedade tinha sido dado a uma escola e que "mais de cem rapazes, que mais pareciam makavenkikos" a frequentavam no distrito da Lunda, no Kuela, "capitania-mor dos bandas e bangalas".

Na casa da metrópole, os trabalhos revolucionários - assim se lia nas convocatórias escritas pelo punho do advogado e grão-mestre adjunto da Maçonaria José de Castro - nunca se devem ter realizado numa sexta-feira, dia reservado às makavenkadas, nem tão-pouco às terças, em que as noites talvez ainda estivessem ocupadas pela Academia Real dos Camelos, uma subdivisão do clube presidida pelo ex-padre e republicano João Bonança, transformando-se uma das salas a preceito, com panos de Arraz a tapar as paredes e, nos lambrins, desenhos alusivos a caravanas no deserto, para que os discursos pós-refeição estivessem bem enquadrados.

Também não deve ter contado com a companhia do makavenko Santos Joya, que exercia "extraordinário poder magnético sobre as mulheres, convidando-as às dezenas para os jantares" e, por essa razão, já merecera "as honras dum festim à romana e respectiva coroa de louros, para se lhe exaltar as suas qualidades de macho". Quando ele não aparecia faltavam "damas e melhores exemplares... da raça luso-espanhola" que "abrilhantassem a encantadora festa porque as flores animadas são sempre bem cabidas e apreciadas".

Mas, provavelmente, o que a Comissão de Resistência da Maçonaria (nomeada por decisão unânime do "Povo Maçónico", reunido a 14 de Junho de 1910) não deixou escapar foram os petiscos preparados por Josué dos Santos, o mordomo que, antes de ser contratado, andava pelas feiras em demonstrações macabras com esqueletos e afins. Era um cidadão do mundo, chegou a travar amizade, na Abissínia, quando foi visitar uns companheiros da armada italiana ali presos, com o rei Negus, o qual, lembrando-se, na certa, dos belos carapaus que este lhe cozinhara, enviaria à família uma mensagem de condolências ao saber da sua morte. É, aliás, da autoria do despenseiro, por vezes cozinheiro, a explicação 'científica' do nome da sociedade... inventado por Grandella: um povo de origem asiática, das ilhas Curilas, que já habitara na península ibérica, no que é hoje Portugal e no País Basco, muito antes dos gregos, "antes do desaparecimento da Atlântida e tinham uma seita que professava uma espécie de culto pela mulher esbelta, mundana, com quem conviviam e protegiam aproveitando-a mesmo para fins de utilidade geral".

Fosse qual fosse a origem, a palavra 'makavenko' não agradava a todos: a uns por pura inveja e a outros por... a confundirem com desvergonha. Será mesmo objecto de discussão na Câmara dos Pares do Reino, logo a seguir ao assassínio do rei D. Carlos, durante o governo de "acalmação", quando Francisco Joaquim Ferreira do Amaral se tornou presidente do Conselho. No Parlamento, acusaram-no de ser makavenko, ao que ele respondeu ter muita honra em pertencer a um grupo de homens que se juntava "em cavaco despreocupado e ameno, e que, ao fim das refeições que compram com o seu dinheiro, se não esquecem de dar de comer a quem tem fome, e de proporcionar instrução a quem dela precisa para ganhar honradamente a sua vida". Oficialmente, estava suspenso - uma das regras obrigava o detentor de um cargo político a suspender a sua qualidade de sócio. Na mesma altura, também o acusaram de perseguir Francisco Grandella, mandando a polícia fazer buscas nas suas residências, dizendo procurar o escritor "anarquista" Aquilino Ribeiro que se evadira da prisão. Até nos makavenkos fizeram rusgas, sob o pretexto de jogo clandestino.

Ferreira do Amaral, mais tarde presidente honorário da sociedade, conhecera Grandella por ocasião do Centenário do Descobrimento da Índia, em 1898. O engenheiro makavenko Ângelo de Sárrea Prado levou o almirante e outro membro da Sociedade de Geografia à fala com a direcção do clube. Queriam pedir-lhes que fizessem o possível em prol das comemorações, dizendo-se preocupados com a falta de hotéis, face ao número de pessoas esperadas em Lisboa. E sugeriram que um makavenko abrisse um grande hotel, "de confiança e que não escaldasse, para poder ser recomendado pela Sociedade de Geografia". Logo Josué, com dois sócios por detrás, se prontificou a tratar da logística e uma das damas presentes assumiu a gerência, porque "l'amour oblige...", escreveu Grandella. Num instante, tomaram um prédio, na Avenida da Liberdade, onde fora o Hotel Mata, e, em três tempos, se inaugurou com um "sumptuoso jantar" servido em loiça da Índia.

Dos encontros da Comissão de Resistência, cujos trabalhos são difíceis de descortinar, já que durante a revolução de Outubro ninguém parecia coordenar ninguém, não deu Francisco Grandella conta no seu livro "Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos", que editou em 1919. Nem sobre as reuniões dos maçons com "plenos poderes para velar pela segurança dos irmãos, defender a maçonaria dos ataques da reacção política e religiosa, guiando o trabalho dos obreiros no mundo profano no interesse superior da pátria e da segurança dos cidadãos", nem sobre outros episódios por poderem causar escândalo, confessou o proprietário dos Armazéns Grandella numa carta ao seu amigo arquitecto e, a dada altura, presidente dos makavenkos, Rosendo Carvalheira. Mas a outros não perdoou, como no caso de Sebastião, o escrivão da Boa Hora castigado por mau comportamento. É que esse sócio, a seguir a um banquete, atravessou as salas, meteu-se na última com a sua Chica dos Camarões, "sem se importar do que pudessem dizer e... ouvir..." Grandella não gostou e fez queixa formal à direcção. Foram nomeados o juiz (o médico patologista Azevedo Neves), os advogados e os jurados, e o réu foi condenado a ver o seu retrato pendurado na sala do crime, tapado por uma parra da faiança do makavenko Bordalo Pinheiro. O queixoso ficou satisfeito, embirrava com o homem desde que dissera mal de uma das suas sopas e das suas palavras.

Fora-lhe, portanto, aplicado o Degredo da Parra, mas o castigo podia ter sido o de se pintar a óleo o seu retrato num banco para que todos se sentassem em cima dele. Ou o Suplício do Penico, que constava de colocar a fotografia do condenado no fundo de um bacio. Ou, ainda, obrigá-lo a beber, quase sem respirar, 12 capilés de cavalinho, o xarope de avencas, água fresca, casca de limão e gelo, que se sugava por um tubo de lata com a figura colorida de um cavaleiro tauromáquico e era considerado uma bebida de gente fraca. Mas teve sorte, Sebastião, porque podia ter ficado sem as ligas...

Publicado na Revista Única do Expresso do dia 30 de Janeiro de 2010

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